Bernardo Kucinski e a culpa dos que sobreviveram

bernardo kusinciEm entrevista à DW Brasil, escritor brasileiro fala sobre o processo criativo de “K”, livro em que aborda o desaparecimento de sua irmã durante a ditadura militar.

São Paulo, Brasil, 1974. Há dias, K., proprietário de uma loja de roupas masculinas no tradicional bairro judeu do Bom Retiro espera por um sinal de vida da sua filha desaparecida, Ana-Rosa Kucinski Silva. Integrante de uma guerrilha urbana, a docente da cátedra de Química da Universidade de São Paulo era militante contra a ditadura militar brasileira (1964 – 1985).

A busca por Ana-Rosa compõe o quadro narrativo de K., do jornalista, cientista político e professor aposentado da USP Bernardo Kucinski, atualmente considerado uma importante voz para o reconhecimento e memória dos desaparecidos políticos durante o regime militar. Um dos ex-conselheiros do antigo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Kucinski narra uma história ficcional, mas pouco distante do desaparecimento da própria irmã, Ana-Rosa, e da angústia do pai em busca de respostas sobre o destino da filha.

Publicado no Brasil em 2011, o romance traduzido em várias línguas terá sua versão alemã (K. oder Die verschwundene Tochter, ou K. ou a filha desaparecida) lançada durante a Feira do Livro de Frankfurt, que este ano homenageia o Brasil e que começou no dia 9.

O livro chamou a atenção não apenas de editores alemães, mas também de resenhistas do país por relatar sobre as memórias de regimes de opressão na Alemanha, na Polônia e no Brasil. De acordo com a jornalista da rádio pública alemã SWR (Südwestrundfunk), Eva Karnofsky, “ele [Kucinski] não se coloca apenas no lugar das vítimas, mas se preocupa com todo o ambiente que rodeia os personagens e tenta descobrir porque pessoas se dispõem a colaborar com uma ditadura. É uma história comovente sobre um capítulo obscuro da história brasileira”, descreve.

Em entrevista à DW Brasil, Kucinski disse acreditar que “os elementos judaicos de K. podem ter sensibilizado o público alemão. Outro fator é haver alguma semelhança entre a atmosfera de vigilância e opressão descrita no livro com as situações vividas na Alemanha durante o nazismo”.
Leia abaixo a íntegra da entrevista:

Deutsche Welle: Para o editor da versão alemã, Reiner Nitsche, o foco em temas brasileiros em 2013 fez com que ele recebesse várias ofertas com temáticas sobre o país, mas nenhuma chamou tanto a sua atenção como K.. Por que acredita que o livro tenha sido traduzido para o público alemão?

Bernardo Kucinski: Eu acredito que os elementos judaicos de K. podem ter sensibilizado o público alemão. O personagem principal é um judeu que já havia sido perseguido na Polônia antes do nazismo. Ele emigra para o Brasil [onde também ajuda a fundar o partido sionista de esquerda e o cultivo à literatura judaica iídiche] e lá sofre uma nova tragédia.

O livro remete ainda a situações de vida no período nazista [já no Brasil, a esposa de K. recebe a notícia de que a família dela havia sido dizimada durante a ocupação alemã na cidade polonesa de Włocławek].

O outro fator é haver alguma semelhança entre a atmosfera de vigilância e opressão sobre a vida das pessoas descrita no livro com as situações vividas aqui na Alemanha durante o nazismo. Uma relação que é feita, mesmo tênue, entre a ditadura e o Holocausto [um exemplo é o trecho do livro em que K. reflete sobre a impossibilidade de ao menos ter o corpo da filha: “Os nazistas registravam os mortos. Cada um tinha um número tatuado no braço. Eram execuções em massa, não um sumidouro de pessoas”]. E acredito que esse é o prospecto que torna o livro atrativo para o leitor alemão.

Alguns críticos da sua obra apontam influências do autor tcheco Franz Kafka em situações vividas pelo personagem K., como a angústia e opressão diante das instituições. Quais influências tem o autor universal Kafka para o livro K.?

De fato há uma intencionalidade em usar a palavra K. O livro resulta do fato de que li muito Franz Kafka. A primeira impressão é a situação de absurdo, de um sistema totalitário, um labirinto que o pai percorre e não consegue nunca chegar à verdade. Uma situação que se consolidou como “kafkiana”. Uma segunda abordagem, talvez mais delicada, é o fato de que o livro se inspira pela ideia da culpa. Os que sobrevivem sentem-se culpados apenas pelo fato de terem sobrevivido, enquanto seus parentes e conhecidos não sobreviveram. Esse é um tema presente na obra de Kafka. O centro de uma das obras do autor tcheco é a questão de que uma das personagens [Josef K., em O Processo] foi acusado e carrega uma culpa, mas não sabe ao certo o que é. De tão acusado ele se acredita culpado.

Por que a culpa é um tema tão importante?

A culpa, creio, é o âmago do livro, talvez o motivo que me levou a escrevê-lo e a razão de ter assumido a forma de uma catarse. Não [foram] só as pequenas culpas de K. por não perceber o que vinha acontecendo [com a filha], mas também as minhas.

Ana-Rosa Kucinski desapareceu em abril de 1974. Por que escreveu um romance baseado na história da sua irmã somente 40 anos depois?

Há dois anos escrevi uma novela que nada tem a ver com o tema, mas logo em seguida escrevi uma série de pequenos contos parcialmente autobiográficos, inspirados na minha família, meu pai, meus tios e primos, meu irmão. Talvez esses contos tenham desencadeado o processo mental e psicológico que me levou ao livro. Isso explicaria porque agora, mas não explica por que não antes. Não antes porque há um momento logo depois do choque do desaparecimento em que se deve seguir vivendo pelos que estão vivos, os filhos principalmente. Passaram-se quarenta anos, os filhos já têm vida própria, eu mesmo me aposentei. Nesse momento se dá o processo de catarse, eu entendo o livro como uma catarse.

Segundo seu prefácio, “tudo é ficção, mas tudo aconteceu”. Por que escrever uma história ficcional tão próxima da história real?

A forma que eu encontrei de narrar foi inventar situações a partir de incidentes ou fatos que realmente ocorreram. Alguns capítulos são muito factuais, por exemplo “Nesse dia a terra parou” [quando o pai aguarda pelo rádio o anúncio do governo militar sobre o paradeiro de desaparecidos políticos]. Outros capítulos são totalmente imaginados, por exemplo “A terapia” [o diálogo entre uma terapeuta e uma faxineira que trabalhou no local de tortura de presos políticos]. Essa forma me permitiu fundir situações e trazer elementos do passado anterior ao desaparecimento, trabalhar com a imaginação.

Cada capítulo de K. é um fragmento. Alguns deles são vozes de personagens que, no conjunto da obra, dão ao leitor um panorama sobre o contexto social da época. O que explica a sua opção por capítulos estruturados dessa maneira?

Essa foi a maneira como a história foi saindo de dentro de mim. Primeiro eu escrevi algumas histórias e acho que no processo mental de lembrar da família veio em mente uma primeira história que depois faria parte do livro. Mas eu ainda não tinha uma estrutura em mente. Nesse processo, uma história puxou a outra. Após quatro ou cinco fragmentos, eu senti que já tinha uma narrativa mais orgânica e precisava de um fio condutor que unisse as histórias fragmentadas.

Por que e quando decidiu que K. seria o fio condutor da história?

Hoje eu acho que o K., o pai, foi uma figura importante na minha vida. No começo talvez fosse uma figura entre duas ou três. Ele acabou encarnando outras figuras também. O drama de não saber o que a filha fazia, ou seja, a militância política clandestina na organização de esquerda a ALN (Ação Libertadora Nacional), o fato de ser surpreendido. Isso aconteceu também com outros membros da família.

Fonte- DW Brasil
 

Link permanente para este artigo: https://forumverdade.ufpr.br/blog/2013/10/15/bernardo-kucinski-e-a-culpa-dos-que-sobreviveram/