Um exemplo para o Brasil: familiares das vítimas da ditadura da Argentina falam da equipe de antropologia forense que completa 30 anos.

Foto da tarefa da EAAF, em fossa comum no ex arsenal Azcuénaga, em Tucuman.

Foto da tarefa da EAAF, em fossa comum no ex arsenal Azcuénaga, em Tucuman.

 

Olham teu silêncio, olham teu sorriso

 

 Enquanto no Brasil as dificuldades em se avançar no resgate da Verdade, da Memória e da Justiça acerca das graves violações de direitos humanos durante o período da Ditadura Militar seguem com muitas dificuldades, obstáculos e resistências de setores conservadores, a Argentina dá um exemplo de respeito, dignidade e humanidade. Reproduzimos abaixo (traduzido do original) matéria publicada no site ‘Página12“, no dia 30 de junho de 2014 último e que revela um pouco do que esperamos se torne realidade no Brasil.

Resgatar a verdade do passado, registrar essa memória para conhecimento das gerações futuras e fazer justiça dependem de muitas coisas, mas para dar os primeiros passos  é preciso ter entendimento, vontade e compromisso.

Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça!

Boa leitura e reflexão!

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O trabalho dos membros da equipe argentina de antropologia forense é destacado, tanto por seu rigor científico como pela sua qualidade humana pelos filhos e familiares de desaparecidos que, graças à EAAF, puderam saber o que aconteceu com seus entes queridos.

 

É um olhar que te ouve, estão atentos à tua reação para responder”. A definição da escritora Paula Bombara, que em 2012 se reencontrou com os restos de seu pai sequestrado em 1975, sintetiza um sentimento comum sobre os membros da Equipe de Antropologia Forense dos familiares das vítimas do terrorismo de Estado que, graças à EAAF, puderam encerrar o luto iniciado durante a ditadura.

 

A tarefa da Equipe é importantíssima para os familiares. Além de seu profissionalismo, possuem uma qualidade humana incrível. Estarei agradecido a eles pelo resto da vida”, declara Horácio Pietragalla, que muito antes de ser deputado foi “o primeiro filho a recuperar os retos do pai e da mãe”. O jornalista Emiliano Guido que graças à EAAF pode enterrar sua mãe, coincide com que “é um grupo humano excelente, além de ser muito profissional” e lembra em especial o trabalho de pesquisa com quem se encontrou pela primeira vez que se aproximou da Equipe, que por esses dias celebra seus trinta anos de trajetória.

 

Meu primeiro contato com a Equipe foi no mês em que recuperei minha identidade em 2003. Estavam trabalhando em uma fossa comum do cemitério se San Vicente, Córdoba, e tinham a certeza de que meu pai estava aí. Estavam exumando e tinham muitos indícios, restos de um homem de quase dois metros, para o qual me pedem uma mostra de sangue”, lembra Pietragalla. “Embora fazia pouco tempo em que havia recuperado a identidade, logo depois comecei a trabalhar com as Avós, de tal maneira que o assunto era conhecido, por isso a confirmação chegou por telefone”, acrescenta. “Ir a Córdoba, buscar os restos e enterrá-los em um cemitério junto com os de meu irmão Paulinho, que não cheguei a conhecer, foi muito forte”.

 

O segundo capítulo foi um ano depois quando recuperou os restos de sua mãe. “Depois que a assassinam, meu avô fez muitas buscas, soube que me tinham tirado dessa casa e que a tinham enterrado no cemitério de Boulogne. Fez a denúncia e em 1984 realizaram-se exumações, mas não existia muita experiência no âmbito da antropologia: foram enviados os crânios para La Plata, foram misturados com outros e se extraviaram. Com as leis de impunidade, as pesquisas se interromperam. Porém, parte dos restos ficaram em um depósito, em 2004 a EAAF conseguiu recuperá-los. Com a informação que constava na causa e minha amostra de sangue, confirmou-se a identidade e pude recuperar os restos. Tive muita sorte, era o primeiro filho que recuperava os restos do pai e da mãe. Hoje existem vários casos” afirma com Júbilo.

 

A tarefa da Equipe é importantíssima para os familiares. Além de seu profissionalismo possuem uma qualidade humana incrível. Serei grato pelo resto da vida”, afirma Pietragalla. Para registrar esta qualidade, conta que “quando me avisaram da identificação de minha mãe, eu tinha me separado recentemente, vivia em um hotel, e foi tanta a alegria que subi no furgão, entrei no Edifício Libertador e subi em um tanque militar e gritei ‘filhos da puta’. Tinha necessidade de desabafar. Contei para eles e foram visitar-me várias vezes, com uma certa culpa de se tinha agido bem ou não. Continuaram preocupados comigo. Eu gosto muito deles pois têm a ver com os familiares e querem saber o que acontece depois de darem a notícia. Respeita o que cada um quer fazer e além de tudo, não se esquecem e são muito calorosos.

 

 

Antecedentes da Pesquisa

 Raul Guido e Silvia Giménez foram sequestrados em junho de 1976, quando seu filho tinha 15 meses. “Meu primeiro contato com a EAAF foi a partir do documentário Tierra de Avellaneda, que me alertou sobre esse caminho, uma vez que não tinha noção de que se poderia conseguir a recuperação dos ossos” relata Emiliano Guido, que então militava em Hijos La Plata. Lembra do tratamento em sua primeira visita à Equipe e sobretudo o impacto ao perceber o trabalho prévio. “Fizeram uma busca em uma base de dados para tentar reconstituir o que tinha acontecido com meus pais depois dos sequestros. Foi aí que me convenci de que tinham uma boa pesquisa. A partir de alguns poucos dados, deram-se conta de que o caso se situava em um sequestro mais amplo: nesse dia, em Mar del Plata, caíram nove companheiros do PRT e tudo indicava que terminaram no Pozo de Banfield e que, da mesma maneira que muitos sumidouros da zona sul, podiam ter sido enterrados como NN (desconhecidos) no cemitério de Avellaneda”, conta Emiliano, jornalista do jornal Miradas al Sur.

 

Durante anos, depois de deixar sua amostra de sangue, foi contatado para checar dados sobre os militantes caídos com seus pais. Em 2006, ocorre o chamado: a identificação dos restos de Silva, exumados de uma fossa comum em Avellaneda. Depois chegaria a decisão da homenagem à militante que foi sua mãe no cemitério de La Plata, do qual participaram membros da EAAF. “Foi sempre um grupo humano excelente, muito profissional” destaca.

 

“Responder a partir do saber”

 Daniel Bombara foi sequestrado em Bahia Blanca no final de 1975. Sua filha estava convencida de que nunca o encontraria, mas em uma manhã de 2008, informada da campanha para que todos os familiares de desaparecidos fizessem uma amostra de sangue, foi ao Hospital Tornú e deixou sua amostra.

 

“Um frasco no mar”, lembra Paula, que além de escritora de literatura infantil é bioquímica e tinha lido sobre o trabalho da EAAF, quando estudava genética. Três anos depois recebeu “o chamado”: “Falo desde EAAF, queremos ver-te”.  “Respondi Ok, não perguntei nada. Sabia que se a amostra estivesse errada me teriam dito. Foi quase uma certeza que o tivessem encontrado e entendia que não me diriam por telefone”, relembra.

 

Por aquele dias estava escrevendo para o livro ‘Quem sou?’, sobre netos recuperados e reencontros, e fui convocada para declarar como testemunha no primeiro processo por crimes de lesa humanidade em Bahia Blanca.

 

“Decidi não contar a ninguém; precisava de tempo, de tal maneira que fui para a EAAF sozinha. Encontrei-me com pessoas super amáveis, surpresas por eu não ter feito perguntas. Nessa conversa, em 16 de junho de 2011, fiz uma porção de perguntas. Primeiramente técnicas: interessava-me saber da análise e como procediam. Depois, detalhes da pesquisa, como o encontraram e como chegaram lá. Perguntas que tinha comigo por muitos anos afloraram e finalmente encontrava interlocutores que podiam responder-me desde seu saber, a partir de pesquisas. Estava vivendo um impossível, era uma sensação de alegria e estava feliz”, lembra.

 

Despois de seis meses, concluídos os procedimentos judiciais, voltou para a Equipe “para buscar a caixa com os restos de meu pai” a quem, junto com sua mãe, decidiram cremar e enterrar as cinzas na Igreja de Santa Cruz. A relação com a EAAF continuou: em março passado a convocaram, juntamente com outros familiares, para participar da pintura de um mural na ex-ESMA, onde funcionará o Banco de Sangue de Familiares.

 

“Aprecio o que fazem desde uma porção de lugares”, confessa. “O trabalho científico é muito interessante. São trabalhos interdisciplinares que são muito ricos para o aprendizado das ciências. Muito além da especificidade de misturar o social com o científico se articulam com populações e narrativas; existe uma questão sociológica e antropológica de resgate de culturas”, destaca Paula. “Desde o vínculo como familiar resgato o calor humano e a sabedoria em escutar; é um olhar que te ouve. Olham teu silencio, olham teu sorriso, estão atentos à tua reação para responder. É muito difícil comunicar isto, não se sabe o que vai acontecer com a pessoa que está recebendo algo tão almejado. Porém, possuem uma disposição amorosa que é muito louvável”.

 

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