Hecilda, pequena mãe, seguiremos na luta! (Paulo Fonteles Filho)

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Rogério Almeida e Lilian Campelo* – Colaboração para a Carta Maior

Fonte: Carta Maior

Hecilda Veiga – uma das mulheres no fronte
Ela tem pouco mais de um metro e meio. Corpo franzino e cabelos ralos. O físico frágil não a impediu de integrar um grupo de ativistas em defesa dos direitos humanos em Belém, capital do Pará, no período conhecido como de exceção na história política brasileira (1964-1985). O raciocínio articulado que recompõe com entusiasmo fatos históricos, ganha forma a partir de uma voz suave.

Ao lado de outras mulheres como Marga Rothe, Eneida Guimarães, Rosaly Brito, Regina Lima, Ana Célia Pinheiro, Isabel Cunha, a professora do Instituto de Filosofia e de Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Hecilda Mary Ferreira Veiga ajudou a fundar a Sociedade de Defesa de Direitos Humanos (SDDH), e militou no PC do B e na Ação Popular (AP). Num instante em que o PCdoB e a AP rivalizavam a hegemonia da esquerda com o PCB.

Além de Hecilda e seus pares mais próximos, é conhecida na história do Pará a atuação do ex-deputado e escritor Benedito Monteiro, o professor e escritor Joao de Jesus Paes Loureiro, Cláudio Barradas, Ronaldo e Ruy Barata e Raimundo Jinkings contra o regime. A pessoa que se depara com a educadora nos corredores da UFPA não imagina as agruras que a mesma passou nos cárceres durante a ditadura militar.

“Eu acho que meu coração ainda é de estudante, como diz a música de Milton Nascimento.” Assim a professora começa a narrar a experiência que viveu durante o período da ditatura civil militar. Antes, tira da bolsa um lenço branco decorado nas bordas com pequenas flores coloridas. Põe em seu colo, lugar mais acessível às mãos, que livres poderá usá-lo caso precise.
O narrar da história se faz a partir da construção de fatos. É um desenrolar de lembranças de homens, mulheres e crianças que fazem parte desse enredo, mas o que se observa é que o protagonista da memória oficial, ao longo de muito tempo, teve um narrador, a figura masculina.

Elas não são de Atenas
“Mirem-se no exemplo / Daquelas mulheres de Atenas / Vivem pros seus maridos / Orgulho e raça de Atenas”. A música de Chico Buarque, em tom irônico, demonstra como a sociedade define o papel da mulher. Ao longo dos tempos, elas foram relegadas ao anonimato e ao esquecimento, o que se observa em um dos episódios mais recentes e brutais da história brasileira.

Mulheres que transgrediram a ordem e o progresso ditado pelo governo foram torturadas. Por serem mulheres, as torturas tinham o objetivo de degradar a alma feminina. O corpo nu ficou à mercê do torturador, as humilhações, a violência psicológica e sexual não pouparam mães, freiras, jovens, nem mesmo grávidas.

Sim, grávidas. Foi o caso da paraense Hecilda Veiga. “Quando fui presa, minha barriguinha de cinco meses de gravidez já estava bem visível. Fui levada à Delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, comecei a ouvir, sob socos e pontapés: ‘Filho dessa raça não deve nascer.”

O testemunho está no livro “Luta, substantivo feminino”. A obra faz parte do relatório “Direito à memória e à verdade”, realizado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos e de Políticas para Mulheres. Nele, há histórias de vida e morte de 45 mulheres brasileiras que lutaram contra a ditatura militar e o testemunho de 27 sobreviventes que narram com coragem os horrores que sofreram nos porões da ditatura.

Hecilda Veiga lutou contra o regime juntamente com seu esposo Paulo Fontelles, assassinado em 11 de junho de 1987, a mando da União Democrática Ruralista (UDR). Paulo, nessa época, advogava as causas camponesas e estava à disposição da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no sul do Pará.

Marido e mulher eram militantes na Ação Popular Marxista-Leninista (APML). O casal foi para Brasília, onde ficaria mais próximo dos acontecimentos políticos. Ela estudava Ciências Sociais, ele Direito na Universidade de Brasília (Unb). Mas, em outubro de 1971, foram presos. Neste ano, começou a história de coragem e luta pela dignidade humana não só de Hecilda, mas de muitas Marias, Anas, Lúcias, Teresas…

Naquele momento havia um interesse e curiosidade em tudo que acontecia. Havia uma atmosfera contra as condições coloniais em vários cantos do mundo, e pela ampliação dos direitos civis. Havia substância. Preocupava-se com um caminho para uma revolução brasileira. Em Brasília causava estranheza para o pessoal que a gente da Amazônia conhecesse a última canção do Chico Buarque. Os debates eram candentes e acalorados. Tive dificuldades em voltar para a universidade a experiência do cárcere. As coisas que sofri e vi foram terríveis.

1971 – prisão em Brasília
“Fomos convidados pela direção do partido para ajudar a oxigenar a luta. Morávamos na própria universidade, num alojamento destinado a casais. Não tardou, eu e o Paulo assumimos a condição de lideranças para reavivar os centros acadêmicos livres. As medidas encaminhadas pelo professor Darci Ribeiro haviam sido refreadas, e parte do quadro de professores demitida, e outra seguiu para o exílio no exterior” rememora Veiga.

A professora pondera que em Belém ocorria uma gravitação de pessoas em torno da Faculdade de Ciências e Letras da UFPA, e que havia uma série de representações estudantis em Belém que agitavam a mobilização em oposição do regime. “A Escola Paes de Carvalho tinha tradição de pessoas articuladas, entre elas recordo da Zélia Amador, Cristóvão, Pipira (Medicina), Mauro Brasil, Ubiratan Barbosa. Promoveram ocupações de alguns prédios públicos aqui em Belém em protesto contra a violência da ditadura. Neste momento recuperamos o Centro popular de Cultura (CPC),” recorda.

Sobre a prisão e tortura, em relato publicizado na internet, a professora narra que:
“Fui levada ao Pelotão de Investigação Criminal (PIC), onde houve ameaças de tortura no pau de arara e choques. Dias depois, soube que Paulo também estava lá. Sofremos a tortura dos “refletores”.

Noutro momento ilustra que “Eles nos mantinham
acordados a noite inteira com uma luz forte no rosto. Fomos levados para o Batalhão de Polícia do Exército do Rio de Janeiro, onde, além de me colocarem na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à ‘tortura cientifica’, numa sala profusamente iluminada. A pessoa que interrogava ficava num lugar mais alto, parecido com um púlpito. Da cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios.”

“As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia. De lá, fui levada para o Hospital do Exército e, depois, de volta à Brasília, onde fui colocada numa cela cheia de baratas. Eu estava muito fraca e não conseguia ficar nem em pé nem sentada. Como não tinha colchão, deitei-me no chão. As baratas, de todos os tamanhos, começaram a me roer. Eu só pude tirar o sutiã e tapar a boca e os ouvidos. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição em Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia. Foi uma experiência muito difícil, mas fiquei firme e não chorei, encerra Hecilda.”

Lenço branco
Contar o que foi 1968 faz parte da memória coletiva. Enfrentar o passado é o primeiro passo para que a sociedade entenda os fatos ocorridos e, assim, não permita que crimes contra a humanidade voltem a acontecer, argumenta Hecilda.

“Eu tinha certa dificuldade de falar sobre isso, mas já passou aquela fase mais difícil dos primeiros tempos. Mas eu acho que é preciso que a gente conte tudo isso para que não se repita mais. Poxa, quantas vidas interrompidas! A vida de uma geração. Até hoje fico muito comovida quando ouço a música ‘Coração de estudante’: ‘Podaram seus momentos, desfiaram seus destinos’. A sensação que eu tenho até hoje é essa, de que eu estou correndo contra o tempo, por que eu tive a minha vida acadêmica interrompida. Eu concluí meu curso depois de 15 anos. E, apesar disso, eu ainda posso dizer ‘ah, eu sobrevivi’, mas quantos outros não sobreviveram?”

Hecilda Veiga hoje é professora de Ciência Política na UFPA, local em que, por coincidência ou não, iniciou a carreira de militante antes de ir a Brasília, em 1968. Como ela, muitas mulheres lutaram e buscaram um país mais justo para todos os brasileiros, especialmente para as mulheres.

Hoje, ela conta sua história. Outras tiveram destinos parecidos, como Inês Etienne Romeu, a única sobrevivente da “Casa da Morte”, em Petrópolis, estado do Rio de Janeiro. E, ainda, outras tiveram suas vidas interrompidas durante um dos momentos mais obscuros da história brasileira, como a sindicalista rural Margarida Maria Alves, morta em 1983 na Paraíba por pistoleiros, a mando de fazendeiros da região.

O que tiramos de tudo isso? Que os direitos das mulheres no Brasil foram conquistados em meio à luta, à dor e resistência e, em muitos casos, sob julgo e morte. O que moveu essas mulheres? O espírito de transformação, da indignação ante a barbárie e a injustiça. E de todas essas histórias ficará o ensinamento da professora Hecilda: é preciso contar sempre, para que episódios como esses nunca mais se repitam. Ao final, a professora devolveu o lenço à bolsa. Não precisou usá-lo.

*Lilian Campelo é jornalista; Rogério Almeida é autor do livro Pororoca pequena – marolinhas sobre a (s) Amazônia (s) de Cá\2012 e anima o blog Furo. Entrevista: Lilian Campelo e Luena Barros (jornalistas) Dilermano Gadelha (estudante de jornalismo da UFPA).

 

Saiba mais:

Paulo Fonteles Filho: “Não achavam algemas para meus pulsos de recém-nascido”

 

 

 

 

 

 

 

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